segunda-feira, 13 de abril de 2015

Neymar: mais além da atitude

Neymar: mais além da atitude


Antes de começar a ler esse texto, saiba que eu não estou negando que Lucho errou ao substituir Neymar contra o Sevilla. Ele era o melhor em campo, eu não tiraria. A ideia era uma substituição tática, não técnica. Por isso Suárez, que é melhor nas bolas aéreas e ajuda mais na defesa, ficou em campo. Sem Neymar, no entanto, o time perdeu a força de contra-ataque. Mas há certo exagero em dizer que por culpa dessa substituição empatamos o jogo. Empatamos por 3 falhas pontuais: a de Bravo no 1º gol; a de Pique no 2º gol e de Suárez ao não converter pelo menos 2 chances fáceis. Mas não é essa a discussão desse post. Falaremos da atitude de Neymar e suas consequências, independente do resultado do jogo.

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     Em 2013, ao chegar no Barcelona, Neymar prometia humildade e dizia saber que chegava em um ambiente novo, disposto a aprender. Atitude louvável. Em campo até hoje sua evolução é notável: hoje é melhor taticamente e está mais entrosado com o time, formando uma ótima dupla com Messi e aos poucos melhorando sua conexão com Suárez. Seu único problema por enquanto é sua atitude: Neymar insiste em reclamar TODA VEZ que não é titular ou é substituído em um jogo. E isso é extremamente negativo tanto para a imagem do jogador quanto do clube por diversos motivos. Explicamos por quê:

1) Exemplo

     Antes, uma pequena introdução histórica: o lema "més que un club" foi utilizado pela primeira vez pelo então presidente do Barça em 1968 em seu discurso de vitória eleitoral. "O Barça é muito mais que um clube", dizia Narcis de Carrera, em catalão. O termo foi amplamente utilizado por clube e fãs como maneira de lembrar a influência do Barcelona na preservação da cultura catalã em tempos do regime totalitário franquista, que, entre outras atitudes, abolia manifestações culturais catalãs, proibindo inclusive catalães de falarem sua língua nativa. O castelhano, vertente tradicional do espanhol, era obrigatório em toda a Espanha... exceto no Camp Nou. O estádio, que seria alvo de vários ataques durante a ditadura do general Franco, era um dos poucos lugares em que os catalães podiam verdadeiramente se manifestar em sua língua. Mais que um estádio: era um espaço cultural. Sobre o assunto, vale a leitura do ótimo artigo científico de Victor de Leonardo Figols: "Dimensões sócio-políticas do Futbol Club Barcelona".

     É graças à influência de Cruyff, que queria importar para o Barça o modelo de academia do Ajax, e reflexo da atuação do clube na sociedade catalã que nasce La Masia. Mais que uma categoria de base, La Masia é uma instituição de excelência aos jogadores que nela ingressam. Por contar com categorias desde os 7 anos de idade (chamada no Barça de PreBenjamín) até 21 anos (idade média dos jogadores do Barça B), o clube conta com um vasto contingente de garotos entre várias idades. Mais que ensiná-los a jogar futebol, La Masia tem outros objetivos: educar no caráter formal do ensino - e por isso conta com escolas de ensino básico, médio e incentiva até que seus jogadores ingressem no ensino superior, quando terminam o ensino médio - e ensinar valores morais, como humildade, respeito e o valor do trabalho. Exige-se dos garotos da base não apenas bom futebol, mas também boas notas na escola e respeito para com seus colegas, técnicos e funcionários do clube. Por essa razão alguns jogadores com claro talento não tiveram futuro no clube. Exemplo mais famoso disso é Icardi, que hoje faz sucesso na Inter, mas sempre nunca teve uma atitude correta nos tempos em que jogou na base do Barça (prova disso é o famoso caso com a namorada de Maxi López, que era seu amigo próximo em tempos de La Masia - o que não o impediu de furar o olho do amigo).

     Como toda criança, os garotos de La Masia têm seus ídolos. Sergi Samper, o primeiro e até agora único a passar por todas as categorias de base do clube (do PreBenjamín até o time principal), sempre declarou que seus ídolos no qual se espelha são Busquets, Xavi e Iniesta. Rodrigo Tarin, um dos mais promissores zagueiros do Juvenil A, sempre diz que seus exemplos são a raça de Puyol e a elegância de Pique. Seung-Woo Lee, apelidado "Messi coreano", declarou recentemente que, quando for profissional, quer ser tão bom quanto Messi, Suárez... e Neymar, a quem chamou "melhor jogador do mundo" inclusive. Exagero ou não, dá uma noção do que Neymar significa pra muitos desses garotos.

     Neymar hoje é tão símbolo do Barcelona quanto foi Puyol em seu tempo. Quanto Xavi foi e ainda é. Quanto Messi pra sempre será. Neymar precisa ser exemplo positivo para os garotos da base que o idolatram e por isso foi justamente criticado por sua atitude: cobrar de crianças uma postura ética quando seus maiores ídolos fazem exatamente o oposto seria hipocrisia. Você pode concordar ou não com seu técnico, mas em hipótese alguma deve contestá-lo em público. Se você discorda, converse em privado, com educação. É uma lição básica ensinada em todas as categorias de base. É questão de hierarquia e respeito.

     Especialmente considerando toda a polêmica envolvendo sua contratação - polêmica da qual ele não tem culpa, é bem verdade -, Neymar deveria se esforçar para provar que não é um "galático". É um garoto humilde que, independente de seu óbvio talento, veio ao clube para aprender com os melhores. Fosse no Real Madrid, suas atitudes pouco importariam. A base é só mais um patrimônio econômico para eles. No Barcelona, no entanto, La Masia é um patrimônio cultural. É um dos pilares do clube. "Més que un club" não significa ter uma postura absolutamente irretocável, mas significa que seus atos servirão de exemplo para várias crianças. Neymar precisa lembrar disso, pelo bem de sua imagem e da do clube.

Como esperar que os garotos da base tenham um comportamento exemplar quando seus ídolos não dão exemplo?

2) Respeito

     Respeito tanto ao técnico quanto aos seus companheiros de time, diga-se.

     Aos companheiros de time porque é extremamente desagradável quando você substitui um jogador que, ao sair, dá a clara impressão de não confiar em você para fazer um trabalho tão bom quanto o dele. Imaginem-se na seguinte situação: você é um profissional à espera de uma oportunidade para mostrar seu trabalho e, quando ela finalmente surge, o companheiro com quem você convive diariamente, com quem você trabalha e até tem uma relação de amizade age como se você entrar no lugar dele fosse uma blasfêmia tão grande que se você tivesse o mínimo de consciência pediria para que seu superior mudasse de ideia porque você nunca será capaz de chegar aos pés do que seu colega faz em campo. Parece agradável? Independente do aspecto técnico ou da substituição ter sido certa ou errada, imaginem-se na pele de Xavi, que foi quem substituiu Neymar: o que passa pela cabeça de um dos maiores ídolos da história do clube quando é anunciada a substituição e Neymar age como se sua saída fosse um absurdo, como se todos os que estão no banco são incompetentes demais para merecerem jogar? E não só Xavi: o mesmo valeria se fosse Mascherano, Pedro e até Sergi Roberto. Não cabe a um jogador menosprezar um companheiro, seja ele quem for. A substituição de Lucho pode ter criado um clima chato entre Neymar e o técnico? Talvez, mas pode ter certeza que a reação de Neymar foi BEM mais prejudicial.

     Ao técnico porque, afinal, é ele quem manda. Simples assim. É questão de hierarquia: por mais importante que você seja no time, o técnico é quem foi o escolhido para tocar o projeto do clube. É ele, não você, que entende questões táticas e físicas, que planeja não só o jogo de hoje como também os próximos e que precisa enxergar os jogadores não individualmente, mas como um todo. É difícil lidar com o ego do técnico? Se coloque no lugar dele, que tem que lidar com o ego de 23 jogadores que invariavelmente querem sempre estar em campo, enquanto é pressionado constantemente por resultados. 22 jogos, 20 vitórias, apenas 1 derrota e 1 empate? Não vale de nada se você tropeçar amanhã.

     O imediatismo no futebol moderno é tamanho que técnicos são avaliados e demitidos no meio de um trabalho sem sequer ter meses para implantar suas ideias. Certa vez um dirigente (do qual não lembro o nome) disse que a razão pela qual times pequenos continuam na mediocridade e alguns times grandes não conseguem manter o sucesso é a constante troca de projeto. Não deu certo nos primeiros meses de uma temporada? Troca de técnico. Perdeu uma sequência de jogos ou um clássico importante? A torcida pressiona e seus dirigentes sucumbem à pressão popular. É um ciclo vicioso que quase invariavelmente resulta na demissão do técnico e na troca do projeto. Todo o planejamento, contratações e ideias foram pro lixo.

     Ironicamente, a história mostra que os times mais vitoriosos vão justamente ao contrário dessa tendência: o Manchester United de Alex Fergunson, que não ganhou absolutamente nada nos primeiros 4 anos, conquistou tudo que era possível nas duas décadas seguintes; a seleção espanhola, cujo começo da era vitoriosa se deu com Luis Aragonés (2004-2008) e teve seu projeto mantido por Del Bosque (2008-hoje), resultando em 2 Eurocopas e um título inédito de Copa do Mundo; o Barcelona de Pep Guardiola, que, no momento de sua contratação, foi extremamente contestado, pois nunca havia trabalhado em qualquer equipe que não fosse das categorias de base do Barcelona, e cujo sucesso posteriormente todos conhecemos.

     Pensem em tudo isso quando criticarem um técnico. A crítica positiva é válida? Sim, é a que tentamos fazer aqui. E Lucho já foi objeto da minha em VÁRIAS ocasiões. Mas isso é BEM diferente de achar que tem que mudar o técnico e começar um novo trabalho. Especialmente em pequenas coisas como discussão entre jogador e treinador, isso jamais deveria ser cogitado. Muito menos imediatista seria uma conversa entre técnico e jogador para resolver entre eles o problema. O maior reflexo de que um técnico faz um bom trabalho vai além dos resultados: é o que os jogadores demonstram em campo. No Barça de hoje, se algo não falta é vontade. E os resultados passam longe de ser ruins: líderes da Liga, finalistas da Copa do Rei e nas quartas-de-final da Champions. De quantos técnicos você poderia exigir mais? Quantos técnicos no mercado fariam um trabalho melhor? Me arrisco a dizer que nenhum.

3) Imprensa

     Existe algo em comum nas imprensas de Barcelona, de Madrid, do Brasil e de praticamente todo lugar do mundo (com louváveis exceções): o que importa pra elas é vender informação. E não tem nada que venda tão bem quanto uma polêmica.

     O jornalismo mudou muito de uns tempos pra cá. Antes feito por imprensa física (jornais e revistas), a revolução tecno-informacional transformou esse ramo da sociedade de forma profunda e significativa. Antes, na melhor das hipóteses, éramos informados no dia seguinte das coisas mais importantes que aconteceram. Hoje, com as mídias sociais, as informações chegam em questão de segundos. Como a imprensa tradicional pode competir com isso? Simples: expandir os trabalhos para a web e utilizar as mesmas técnicas das mídia sociais: informação rápida, quase instantânea.

     O problema é que, junto com as vantagens de copiar as mídias sociais (rapidez e popularização da difusão), vêm as desvantagens: no ímpeto de ser sempre o primeiro site a divulgar a informação, muitas vezes (pra não dizer praticamente sempre) a informação não é apurada. Pouco importa se suas fontes têm credibilidade, o que importa é ser o primeiro a comentar sobre o assunto. Se a informação for provada falsa depois, quem se importa? Apague como se nunca tivesse existido, afinal, ela já cumpriu seu objetivo: rendeu clicks ao site. E informações de um site são copiadas por outros, que não podem se arriscar a serem os últimos a divulgar a notícia. Sem qualquer cuidado de checar as fontes e apurar as informações, claro. As vezes sequer existem fontes.

     Esse modelo antiético de jornalismo é amplamente empregado nos meios de comunicação da atualidade, inclusive os que se dizem sérios. Uma ótima crítica a esse modelo de jornalismo foi escrita por um ex-funcionário do Daily Mail (ING), que narrou as diversas posturas antiéticas praticadas pelo jornal durante sua estadia na sede digital da empresa.

     Aplicando isso ao futebol, é fácil entender onde quero chegar: quais são as notícias que têm mais espaço na mídia tradicional? São as discussões táticas, as análises históricas, os textos 
que promovem discussões culturais? Ou são as crises - inventadas ou não, quem liga? -, as demissões, as piadas, enfim, tudo que é facilmente consumido pela grande massa?

     Certa vez, em uma coletiva de imprensa do Marseille, Marcelo Bielsa foi questionado sobre por que não fazia treinamentos abertos para a imprensa. A resposta do treinador foi uma aula sobre ética no jornalismo:


     Em resumo, Bielsa diz que o jornalismo atual não dá a mínima para questões realmente relevantes no futebol. Pouco importam as discussões técnicas, táticas ou de estratégia: se acontecer uma discussão em um treino aberto pra imprensa - o que acontece em TODO time, como o próprio Bielsa afirma -, isso será o foco dos jornalistas. E uma mera discussão vira um confllito. Um conflito vira uma crise. Pouco importa se o que dizem nos jornais não condiz com a realidade, o que importa é vender.

     A função social do jornalismo é informar seus leitores e torná-los mais cultos. O jornalismo moderno não faz nem um, nem outro. Pelo contrário: a grande maioria dos grandes veículos de imprensa se vendeu em nome da corrida informacional. Reflexo da sociedade de consumo em que vivemos, a informação deixou de ser cultura. O que consumimos em jornais geralmente não servirá para enriquecer em nada nosso conhecimento. Pelo contrário, são informações descartáveis.

     Finalmente, chegamos em Neymar. Em situações normais, a atitude de Neymar seria normal, de jogo. Afinal, quantos jogadores não saem com cara feia ao serem substituídos? Não é tão simples quando você joga no Barça. A imprensa de Madrid transformará isso em uma crise de egos entre técnico e jogador. A imprensa de Barcelona voltará a discutir se Lucho realmente tem o controle do vestiário - o que alias, começou a ser discutido após a suposta briga entre Messi e Lucho, que Mathieu e vários outros afirmaram não ter sido nada além de uma discussão de treino, como as que Bielsa diz que sempre acontecem. A imprensa brasileira, sempre buscando a polêmica que atraia leitores, traduzirá o caso como "Neymar vira descartável no Barça, se irrita e ainda vê Messi 'intocável'" (texto retirado na íntegra de um tweet da ESPN, um canal considerado sério). Cada um com intenções próprias, o objetivo de todas é o mesmo: atrair clicks para seus sites. É isso que move o jornalismo moderno: a informação superficial, vazia. O click do leitor.

     Por isso Neymar precisa tomar mais cuidado com suas atitudes. Algo até certo ponto inocente pode tomar proporções inimagináveis, como foi na suposta crise de janeiro depois da derrota contra a Real Sociedad. Se naquela época o resultado foi incrivelmente bom para o futuro do clube (as eleições foram anunciadas para o mesmo ano), a próxima repercussão pode não ter resultados tão positivos. E uma diretoria tão refém dos veículos de informação como a atual, com relações extremamente próximas do Grupo Godó (Mundo Deportivo, RAC1, entre outros) faria de tudo para manter o apoio da imprensa e, por consequência, da grande massa. Evitar que crises midiáticas se transformem em crises de fato é uma necessidade surreal dos tempos modernos.

ps: ao citar ESPN, dei um mero exemplo. Vários outros veículos de mídia poderiam ser incluídos na mesma descrição, a diferença é que a ESPN é a que eu mais acompanho.
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     Não tenho a menor dúvida de que Neymar resolverá esse pequeno problema de atitude. Um garoto que conseguiu lidar tão bem com todo sucesso que teve em uma idade tão jovem não estragará a própria carreira no clube que sempre sonhou em jogar por causa disso. Tampouco acho que uma mera discussão precise se tornar uma crise de ego entre técnico e jogador. Até o fim da temporada, como bem disse Laporta, todos precisam estar unidos por um objetivo comum: o bem do Barcelona. Ao fim da temporada sim, analisando o trabalho como um todo, poderemos falar sobre a responsabilidade de cada um. Discutir o projeto agora só fará mal ao clube. Em tempos de instabilidade política no clube, é obrigação de jogadores e comissão técnica se unir para o bem da instituição.

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